quinta-feira, 29 de novembro de 2012

pedro escreve sobre o zé


professor josé fábio calazans

“...por que gerar desprezo pelos vivos 
e fomentar desejos reativos?...”
e ainda,
“ gente é prá brilhar, não prá morrer de fome...!”
Caetano Veloso

Embora, finalizado em uma tarde (com um atraso de um dia) concluí esta honrosa e, desafiadora tarefa, de escrever um depoimento sobre o professor José Fabio Calazans, numa tarde apesar de que, no meu íntimo, trabalhando, dirigindo meu carro e, acordando às 5h15 da manhã, com a pulga atrás da orelha, este já estivesse se desenhando...
Voltei a dormir e perdí a hora para um importante seminário sobre ‘pigmentação de concreto aparente’ na Praça das Artes, no Vale do Anhangabaú, atrás do Teatro Municipal – projeto de autoria de Marcos Cartum, Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, contemporâneos e amigos, também, do Zé, como todos o conheciam. No táxi, matutava a forma adequada de redigir minhas memórias em relação a tão importante referência em minha formação, não só como arquiteto (tendo sido seu aluno e assistente) mas, principalmente, como cidadão. O Zé, certamente, vibraria com a qualidade e a importância desta obra para a requalificação do Centro!
Conhecí o Zé, numa tarde de projetos nos ateliers da FAU, quando, numa dessas contradições de nosso mundo (e uma das inúmeras da vida do Zé...) ele e seu meio xará, o meu caro amigo, José Geraldo Martins de Oliveira, foram dar aulas de projeto ¬– por um único semestre – cobrindo licença de alguns professores. Voltava da biblioteca e encontrei–o, junto ao Edgar Dente, comentando uma maquete sobre a prancheta, de um projeto habitacional que eu desenvolvera, muito aos moldes das experiências de Artigas, e equipe, na Cecap, com o Zezinho Magalhães e demais.
Naquela ocasião, soube que ele vinha para se integrar, justamente, ao corpo de professores de minha turma e, no semestre que se iniciaria, após as férias de meio de ano, eu seria seu aluno. A experiência foi muito estimulante pois, entrei na FAU em 1981 e, a oxigenação resultante da Anistia Política e a euforia gerada com a volta de Vilanova Artigas, Jon Maitrejean e de Paulo Mendes da Rocha, meu pai, ao corpo docente, em 1979 estava latente ainda! Porém, eram tempos delicados de reconquista do terreno democrático um pouco “pisando o chão devagarinho...”. Na FAU imperava, ainda, uma dicotomia radical entre os que se posicionavam no campo de oposição, e declaradamente identificados como esquerda, em suas diferentes colorações e agremiações: havia, inequivocamente, os ligados à Reforma, identificados como militantes do velho partidão, que tinham, inevitavelmente, como modelos de atuação ética, política e profissional, os mestres Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. Estes viveram, ou herdaram a defesa, apaixonada e militante, do projeto, da arquitetura e do desenho, como ferramentas de transformação cultural e política defendendo, inclusive, a nossa emancipação cultural, como Nação independente e soberana, na luta contra o imperialismo, através desta prática. 
Indiscutivelmente, eu era enquadrado nesta turma, juntamente com colegas do 4º ano com quem convivia e “filava” as contundentes manifestações do prof. Artigas, no atelier 5, analisando projetos dos colegas daquela turma. Os projetos, pregados à parede, eram comentados pelos professores e, ali, nossa formação em arquitetura era potencializada com as possibilidades de reflexões que os problemas enfrentados suscitavam. Neste grupo, convivia bastante com meu querido amigo, o atual presidente do IAB / SP, José Armênio de Brito Cruz, entre outros apaixonados, como eu, pela arquitetura e o urbanismo, pelo desenho e pelo exercício de projeto.
Outros, mais radicais no enfrentamento da ditadura e da opressão física, moral e intelectual praticada pelos militares, aderiram – nos anos sombrios – à luta armada, enxergando, muitas vezes, a prática de uma arquitetura de resistência, sua produção e reflexão, como atitudes confortáveis e burguesas quando a opressão chamava a todos a cerrarem fileiras contra a repressão e priorizar a atuação de enfrentamento do Sistema, sob a forma de guerrilha, como único caminho possível e digno! Fazia–se patrulha contra aqueles que, procurando resistir na manutenção da FAU como formadora de profissionais e núcleo de reflexão, ainda que privada de seus mestres aposentados pelo AI–5, imaginando–os coniventes com um Estado Autoritário e, sob todos os aspectos abomináveis! 
Aí, neste contexto, aparece o Zé Calazans com uma de suas características mais marcantes e qualidade refinada de postura política, pois, apaixonado por arquitetura, por desenho, pelos mestres citados e suas produções, borrava de forma radical esta fronteira, pois, era ele mesmo um radical combatente da ditadura, engajado no Araguaia, a alfabetizar camponeses, na época da ditadura mais ferrenha, mas, seguramente, partidário do “...sin perder la ternura jamás!”. Esta era outra de suas características marcantes e apaixonantes: além de não se encaixar em nenhum dos clubes, partidos, grupos, prateleiras e estereótipos, o Zé, com sua doçura e respeito democrático, e cidadão, aos diferentes pensamentos, munido de uma dialética impecável, criticava (a ‘boa crítica’, construtiva – tão ausente, naquela época e hoje em dia, dos debates políticos – com o intuito de aperfeiçoamento dos projetos, das relações pessoais latu sensu) todas as patrulhas, as tribos, os aparelhamentos, os enquadramentos e os dogmas tão característicos de todas as inúmeras agremiações políticas! Era de uma inteligência brilhante! Sempre a refletir com generosidade e aquela ternura para fazer florescer o melhor para todos à sua volta! Assim, ele lidava com os alunos engajados e críticos que não haviam lido “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” mas, haviam relido a orelha do livro do Sérgio Ferro, dando nó em suas cabeças e, da mesma forma, fazia aflorar na aluna – que hoje em dia receberia a taxativa alcunha de “patricinha” – uma futura arquiteta que refletia sobre espaço, e lhes abria o mundo de Artigas, Corbusier, Niemeyer etc. desconstruindo as referências da morada burguesa do brooklyn que lhes cabia como repertório... Tudo isto, sempre, com um enorme respeito e partidário da prática do diálogo democrático, generoso, do questionamento embasado, das associações lógicas que faziam a todos, refletir, questionar, juntar conceitos e, neste sentido, era um professor fantástico! Pois, além desta formação sólida em dialética, história, filosofia, conhecia a fundo, e como poucos, a produção dos maiores e melhores arquitetos brasileiros, desde os três grandes mestres, já citados, como seus discípulos, alunos e colegas, àquela época, mais jovens como Décio Tozzi, Ubyrajara Giglioli, João Walter Toscano, Edgar Dente entre tantos e, os seus amigos contemporâneos: Era de uma gentileza enorme ao citar, com carinho e admiração, o Tata (Antonio Carlos Barossi), o Zico (José Rollemberg), o Mário Reali, O Zé Oswaldo, O AndréTakya, o Zé Geraldo, o Walter Rosa, o Chico Fanucci e o Marcelo Ferraz, o André Vainer e o Guilherme Paoliello    (então, sócios), o Marcelo Suzuki, o Newton Massafumi e a Tania Parma, o Marcos Acayaba e outros  (que corro o risco de omitir por pura tentativa de concisão...) nos apresentando os trabalhos de autoria destes com desabrida generosidade, apontando suas virtudes e as especificidades do olhar individual e peculiar de cada um deles, sem qualquer traço de vaidade, inveja, ciúme, competição... venenos tão abundantes em tantos outros colegas... Assim, era o Zé: ligado visceralmente à ideia do coletivo, em diferentes escalas! E, principalmente, comemorando a diversidade! Numa época em que queriam nos impor cartilhas e pendurar crachás, ele, justamente, queria aquilo que fosse realmente transgressor! Como um índio contemporâneo nos ensinava, como extensão da fala de Artigas, que a Cidade era nossa aldeia! E, como conhecia a nossa cidade! Fazia parte de um grupo que estudava, a tempos, a formação da cidade de São Paulo, a apropriação de sua geografia, a conformação dos fundos de vale, as várzeas e altiplanos, o espigão da Paulista e o Centro, que tanto amava! E, nos levava a refletir sobre erros e acertos: o que fazer e o que evitar! Nestes diversos grupos de encontro, trabalho e reflexão que frequentava, me convidou a ajudá-lo num trabalho seu, que pretendia fazer como mestrado, e me apresentou ao Galpão e seu time! Misto de república, atelier vertical-remoto da FAU, este importante celeiro de talentos e arquitetos, na Vila Madalena, aonde desenhei – ainda na prancheta, ao lado de vários dos já citados, alguns de seus inúmeros exercícios – belíssimos – de habitações coletivas que, imaginava povoar o Centro e os bairros, e a periferia de São Paulo pois, sua paixão pelas lindas soluções dos grandes mestres e sua postura revolucionária fazia com que ele tivesse um foco inequívoco: a transformação de nossa paisagem e de nossa cidade através de projetos exemplares e destinados à população trabalhadora, operária, servidores públicos e o sem número de sem–teto que é a grande massa de nosso povo! A partir deste trabalho comecei a conhecer a várzea do Tietê, a Vila Cabuçú, e demais recônditos da metrópole de São Paulo, que Zé conhecia como ninguém! Os córregos que vinham contribuir para o Tietê, as várzeas que poderiam ser lindamente ocupadas com um desenho de Cidade que explodisse o conceito, execrável, do lote particular... No meio daqueles matizes de classificações de esquerda eu formara uma convicção: o Zé era o verdadeiro, e talvez único, comunista de fato, que eu conhecera! Como bem disse nosso querido amigo Tata (que conhecí, no Galpão, através do Zé) a militância pela arquitetura e pelo urbanismo, abraçados pelo Zé, eram indissociáveis de sua militância cotidiana, engajada, de corpo e alma, com as lutas sociais pela conquista de moradia, digna, bonita, com a melhor técnica e, na melhor localização, para todos! Era um colaborador, assíduo, até sua prematura morte, dos movimentos sociais o quê, fazia, com rigoroso espírito profissional e não, como penitência-culpada-pequeno-burguesa-cristã assistencialista! Era contratado dos movimentos e associações que, frisava, queriam ter acesso à moradia como um direito de cidadãos, trabalhadores assalariados e, não como pobres miseráveis, apadrinhados por um Estado paternalista e bondoso. Sua prática era de lutar pela equação social, econômica, política, agregadora de poder (para usar uma expressão contemporânea!) àqueles que rejeitavam a condição de párias, excluídos ou pertencentes ao lumpesinato urbano!
Neste contexto, e, já na administração do Franco Montoro, primeiro governador eleito democraticamente, tive a oportunidade de trabalhar, novamente, com o Zé, na CDHU, dirigida, então, pelo Júlio Artigas, seu colega de infância, amigo e vizinho (ele me contava que o pai do Júlio, ia buscá-los na escola – seriam meninos-rapazes de 12, 13 anos? que moravam na mesma rua, se não, na mesma quadra – e, no final da tarde, após a aula iam visitar obras em andamento e que, o “velho” – como carinhosamente ouvíamos os professores da FAU se referirem ao professor João Batista – iluminava a construção com os faróis do seu carro e, sem dúvida, já ali, iluminava-se uma paixão...). Na CDHU, Zé implantou uma equipe multidisciplinar, com sociólogas, economistas, advogadas e arquitetos que ele tinha especial respeito e admiração como o arquiteto, hoje importante urbanista e professor, Claudio Manetti. Nesta equipe, ele procurou viabilizar, através da ação inédita do Estado, readequações de núcleos residenciais em São Bernardo do Campo aos quais já vinha prestando assessoria, em substituição aos assentamentos improvisados, precários, a que se convencionou chamar de favelas. E havia núcleos da maior efervescência política. Com suas lideranças que me balizavam os valores da integridade, ética, e nobreza de classe operária tão sofrida mas, por isso mesmo, tão íntegra, convicta e batalhadora! Havia o “núcleo DER”, um intrigante assentamento de bem construídos bangalôs de madeira, em lotes de 250m², implantados a meio nível do chão, como palafitas em terreno seco, às margens de trecho da Rodovia Anchieta, em construção, para servir de residência aos inúmeros engenheiros que coordenavam as frentes de trabalho dos diferentes serviços. Terminada a obra, pouco a pouco, um grande número de operários que estavam abrigados em alojamentos provisórios, desmontados, agora, passaram a, tranquilamente, se instalar nas casas muito bem executadas, deixadas pelos engenheiros. Depois de 20/ 25 anos, existia ali uma cidade fantástica! Com um sem-número de adaptações, ampliações, subdivisões de lotes que nos davam aulas de soluções, realmente, inovadoras, na desconstrução de programas ortodoxos das casas burguesas! Eram casas construídas no limite do lote, para o filho mais velho que se casou, que compartilhavam um lindo pátio quadrado meio italiano, meio espanhol, para refeições e festas ao ar livre sob as árvores frutíferas! Havia uma “ponte” coberta de área de serviço que interligava as duas residências, para que a sogra e a nora lavassem roupa junto, conversando e compartilhando o programa de rádio, ou, para que de noite, sob uma chuva, a avó pudesse, abrigada, socorrer o netinho – e a nora iniciante – numa crise de febre no meio da madrugada! Tudo aquilo, levava o Zé a implodir e borrar, novamente, um discurso, efêmero e flácido, – que, logo se diluiu como bolha de sabão – de que os ‘modernistas’ (como nos enxergavam!) em contraposição aos ‘contextualistas’ só sabiam projetar palácios isolados em jardins planos gramados! O Zé foi buscar na experiência dos arquitetos de Bolonha, que renovaram a Cidade, com total respeito ao Patrimônio, incrustrando, como numa ‘machetaria urbana’, complementos contemporâneos de miolo de quadra que resolviam a acessibilidade das velhas edificações do tecido urbano, acrescentavam torres de banheiro, cozinhas e áreas de serviço com núcleos hidráulicos e de calefação fundamentais para o aggiornamento daquelas residências. Isto garantia a necessária modernização do centro velho da Cidade e atualizava a dignidade daquelas células habitacionais que faziam o tecido da Cidade! (Aldo Rossi acabara de lançar seu emblemático livro ‘a Arquitetura da Cidade’ e a discussão entre ‘tecido’ e ‘monumento’ se espraiava pela FAU e o Zé já havia, à maneira de um Macunaíma paulistano, digerido-a e atualizado sua práxis deglutindo, antropofagicamente, o mestre italiano, e redesenhava os núcleos residenciais organizando os renques de habitação, junto às encostas frente à frente, configurando uma rua-praça trapezoidal, que interligava duas vias paralelas, no alargamento do conjunto em forma de triângulo, implantava um edifício-flor, um ‘equipamento’, centro comunitário, a igreja...pronto! estava organizada a forma urbanística, incrustrada com elegância na paisagem, desenhando a cidade ideal, democrática, e generosa que nos ensinaram nossos mestres, com o edifício monumento-de todos-coroando o recinto! E, assim, entre tantas, havia a “Favela do Limpão”. Um planalto muito regular aonde se apinhavam um sem-número de casinholas mais ou menos sólidas em torno de um platô desimpedido como uma praça...Zé imaginou uma “Trancoso Boliviana”: quatro renques de casa estreitas, assobradadas e articuladas em meio-nível, emolduravam uma grande praça retangular encapando os taludes simétricos das quatro faces do planalto. Acessava-se as casas por ruas periféricas, no ponto baixo, por onde circulavam os automóveis, o caminhão do lixo, as ‘kombis dos carretos de mudança’ e ‘das Casas Bahia’ (que “viriam entregar os fogões e as geladeiras novas, como dizia o Zé!), as casas, culminavam com pátios secos na cobertura, para estender as roupas, tomar um solzinho, deixar o cachorro seguro ao ar livre, dar banho de sol com privacidade à criança de colo, enquanto a mãe, ou a avó, lavava a roupa da família, cultivar um pé de limão, uma pimentinha, um pé de hortelã ou salsinha...e, inevitavelmente, o churrasquinho da confraternização dos finais de semana! Quatro entradas, públicas, coletivas, dispostas alternadamente, nas esquinas, providenciavam o acesso a esta praça magnífica, perfeitamente plana, que, não sacra – como Trancoso – mas, democrática e profana, emolduravam um belíssimo campo de futebol para a meninada jogar bola, empinar pipa, aprender a andar de bicicleta... Assim, ia o Zé, desenhando a reurbanização de São Paulo com seus inúmeros projetos, sempre muito inteligentes, sempre muito filiados ao que de melhor nos ensinou a arquitetura moderna brasileira e, sempre, muito apaixonado pela vida que, imaginava, iria fluir, feliz naqueles conjuntos! Fosse dado ao Zé, equipe, papel, salário digno, tempo, saúde... e, fundamentalmente, se lhe tivessem convocados os que tem poder político e, se de fato, quisessem transformar esta sórdida realidade habitacional, o Zé, redesenharia a paisagem de São Paulo, com seu entusiasmo e sua paixão contagiantes com maestria! 
Era comum, aos sábados, termos reunião na “Favela do Núcleo 44”, em São Bernardo do Campo! Para lá íamos, a equipe toda num automóvel da CDHU com motorista. Recebia-nos, em sua linda casa, impecavelmente limpa e perfumada, com cortinas de quadrados vermelho e branco nas janelas, uma miúda, mas gigante na sua atuação, Dona Terezinha. Ela era chefe da cozinha da fábrica Mercedes Benz e tesoureira da “associação comunidade do Núcleo 44”. Fazíamos a reunião no barracão da Associação. Pregávamos as plantas e cortes nas paredes, a comunidade se sentava num diversificado elenco de artefatos similares a bancos, cadeiras, engradados de cerveja etc. e o Zé, com sua didática começava a explicar o projeto, os renques gêmeos espelhados de casas verticais, a praça–rua central para a criançada brincar, as comadres conversarem, o centro comunitário (laico) em contraponto à igreja, ambos coroando as duas extremidades da praça–rua... Os olhos brilhavam atentos num silêncio mágico! E a Flávia, socióloga da equipe, explicava, a forma de financiamento da compra do terreno! O Dr. Marcos Peixoto, advogado da CDHU e assessor do Secretário, professor da PUC, explicava os princípios que norteavam o Direito desde Roma Antiga, o conceito de Res-Pública, a importância de que, cada parte cumpra com sua obrigação: o cidadão teria a sua e o Estado, em contrapartida, também! Sim, por que, durante a semana, recebíamos, na sede da CDHU, na Peixoto Gomide, debruçada sobre a lateral do Trianon, o proprietário do terreno e seus advogados pois, o Zé, havia equacionado com a equipe da CDHU, um mecanismo de compra do terreno: os moradores queriam continuar ali, queriam residências dignas e íntegras e queriam comprar a terra do seu proprietário como qualquer cidadão da cidade capitalista! E, com a ajuda do corpo técnico da CDHU, o Zé equacionava toda a operação: a Caixa Econômica, através de um convênio X, compraria o terreno, refinanciando, a porcentagens plausíveis para a renda dos operários (quase todos funcionários das montadoras de veículos do ABC) em valores que ficariam abaixo dos aluguéis com os quais aquelas famílias já haviam se comprometido! No final da reunião de sábado, D. Terezinha, com um grupo de senhoras, colegas da Comunidade, nos brindavam com um banquete divinamente preparado por elas! Eles se cotizavam previamente e, não saímos de lá, sem degustar uma farta quantidade de macarronada à bolonhesa, com frango assado, maionese de batatas e suco de uva servido numas jarras de bico de jaca laranja (que eram, sem dúvida a louça do dia de festa!) coroados por gelatina de morango sobre uma linda toalha florida, também reservada às ocasiões especiais! Éramos recebidos como reis por esta gente guerreira que tropeçava em escombros aos sair de suas casas e desviava de córregos infectos com restos de entulho, sonhando com as casas generosas que, quem sabe um dia, o Estado lhes possibilitaria. Veio a mudança de Governo, o novo Governador (apesar de que, como candidato, tenha visitado à área e se comprometido com a implantação do plano) não deu continuidade ao mesmo...mais uma vez – esta deve ter sido uma em cem – a vida passou uma rasteira no Zé e seu sonho – que era o de muitos – (nada utópico, pelo contrário...) ficou para depois... 
Numa de suas outras transgressões, o Zé me chamava a atenção para as administrações comunistas na Itália. Durante anos, os comunistas italianos, liderados, então, pelo aguerrido Enrico Berlinguer, disputavam as eleições para o Parlamento Italiano apostando num inexorável ‘sorpasso’ ou seja, os comunistas, aliados aos socialistas e agremiações de esquerda de menor presença no Parlamento, juntos, fariam a maioria numa eleição democrática – ultrapassando / sorpassando – a maioria conservadora e demo-cristiana e viabilizariam um governo socialista e democrático na Itália pós-guerra, o quê seria um desafio conceitual e operacional pois, vislumbrava-se o desmantelamento do bloco comunista, as experiências da Polônia começavam a derreter a sólida carapaça do Estado não democrático. E o Zé, acompanhava tudo isto com a maior atenção! Lia os jornais e revistas e me apontava que, apesar do tão esperado sorpasso nunca ter ocorrido, havia várias cidades importantes    (como Bolonha) e aquelas da regio Emiglia (a região Emiliana), em que os prefeitos eleitos eram do PCI! O próprio Giulio Carlo Argan, crítico e teórico da arquitetura, fora eleito prefeito de Roma! E o Zé me apontava que, estas administrações, recusavam o Estado paternalista e, sabiamente, propunham uma atuação, de administrações comunistas, dentro do Estado Capitalista, ou seja, assumindo a lógica do capitalismo e sofisticando um Estado empresário que, não investe a fundo perdido: isto é, se ele, derruba prédios, num centro velho de São Paulo, por exemplo, e investe milhões construindo uma estação (e sua linha) de metrô, porquê, não se beneficiar do valor agregado ao solo urbano, que ele Estado, gerou, tirando partido e, lucro, deste investimento? Ou seja, porquê deixar uma falsa praça, cratera urbana ou, como diria Caetano Veloso, “uma boca banguela”, no Largo São Bento, por exemplo, demolindo o edifício da Capemi, e deixando em seu lugar, uma insólita empena cega não prevista para ficar exposta? seria como amputar um membro de alguém! E, principalmente, abrir mão de redesenhar um coroamento de quadra, extremamente privilegiado, defronte ao colégio São Bento, endereço invejável em qualquer metrópole do mundo! Baseado nestas reflexões e, no terceiro episódio de minha colaboração profissional com o Zé, eu comecei a formular meu TGI! Eu estudava na FAU, tinha meus 20 anos, e não tinha carro (fui ter o meu primeiro aos 25 anos) ao contrário da totalidade de minha turma! O Zé tinha um escritório num edifício fantástico por sua peculiaridade de localização na cidade: na cabeça do viaduto Santa Efigênia, com entrada tanto pela Av. Prestes Maia – no térreo – como, no 4º andar, pela cabeça do viaduto e término do Largo São Bento. Desenvolvíamos um com junto residencial para uma comunidade em Santa Isabel. O Luiz Gonzaga, irmão do José Fábio, era ligado, ou assessor, ao grupo do mosteiro de São Bento, que tinham uma gleba e queriam fazer um conjunto residencial. O Zé conseguiu uma sala neste prédio (cedido pelos Beneditinos como parte da remuneração de seus serviços) e eu e a Silvia Bressiani, ajudamos a desenvolver o projeto mas, era, na pólis adjacente, que exercitei plenamente o desfrute da cidade peatonal e por ela me apaixonei! Na companhia do Zé, tínhamos nosso universo dos mais variados serviços de qualidade! Tudo a preços populares “ As boas papelarias, os melhores restaurantes por quilo, o bacalhau do ‘Itamaraty’, a ‘Casa Califórnia’ das linguiças de Sorocaba...as livrarias, os engraxates que frequentávamos, a copiadora...O Zé era a alegria das mocinhas do balcão da copiadora pois, sempre gentil e brincalhão, com uma pitada de sua sedução (recém separado da Renata Alves de Souza, que viria a ser minha querida amiga – só tinha elogios a ela! ‘como era ‘feminina’, ‘trabalhadora’, ‘maternal’ com a Mariana...o Zé era um sucesso com as mulheres...!). Eu, nos meus vinte anos, imaginava um dia, ter um relacionamento assim! Que, mesmo que terminado, deixasse o patrimônio dos bons momentos, do respeito e afeição e amizade mútuos! Aquilo, para mim, era também uma aula de como “eu gostaria de ser quando crescer”! Então, deixávamos os desenhos no balcão e ele, entre sedutor e didático explicava, “ nós vamos ali tomar uma fanta laranja... – uma de suas paixões! –...enquanto as cópias são feitas... e já voltamos!...” Os sorrisos e gargalhadas eram inevitáveis! Quem era aquele maluco que vivia bem–humorado e alegre naquela cidade?
Como não tinha carro, eu saía da FAU às 16h30 (dando um pequeno ‘cambau’ nas aulas que acabariam às 17h00) e corria para o ponto de ônibus, cruzando com meus colegas, que no seus carros-zero- quilômetro, saíam com as meninas (que eu cobiçava...) para tomar sorvete na brunella da praça panamericana! Eu me mandava para o Largo São Bento num ”Largo da Concórdia” (ou que-o-valha) e, chegava às 18h00 no escritório na torre do viaduto! Trabalhávamos entusiasmadamente até 21h00/22h00! E voltávamos de ônibus, juntos, eu e o Zé conversando sobre a vida... E assim, nascia minha ideia de fazer, como TGI, uma Universidade de São Paulo no Centro, a que chamei de “Univercidade de São Paulo”– (anos depois, criaram uma instituição exatamente com esse nome, assim mesmo, com C!) – toda vez que eu protocolava os relatórios de TGI no departamento de projeto, a atendente, solícita, me avisava, “...ops, você errou aqui...é com s...! “
Então, eu, indignado com a insensatez de uma “cidade universitária” implantada no arrabalde, na roça, a anos-luz de distância do magnífico patrimônio de serviços, prazeres, belezas e contradições que é o Centro da Cidade, imaginei recompor as crateras deixadas pelo metrô no centro velho, reconfigurando a integridade das quadras construídas, imaginando reconsolidar a integridade dos conjuntos das quadras, completando as “banguelas” deixadas pelo metrô propondo, justamente, que edifícios públicos, construídos pelo Estado, em associação às estações de metrô, em subsolo, aflorassem abrigando uma universidade inserida no corpus da Cidade, como em Paris, Valencia etc. etc. Estes edifícios atendiam a um programa completo de Universidade. O professor da Física da USP, Ernst Hamburger, nosso vizinho de rua, no Butantã – pai dos meus amigos Cao, Vera, Ester, Sônia e Feco – havia elaborado um programa de Universidade pública municipal, no Centro da Cidade, aproveitando edifícios ociosos, principalmente à noite, para os que trabalham durante o dia. Este projeto era contribuição ao programa de gestão municipal do, então, candidato à prefeitura de São Paulo, senador Fernando Henrique Cardoso, e, eu, pedi licença ao Wolf (como nós sempre o chamamos) para adotá-lo! E, assim, surgiu meu desejo e desenho de uma Universidade pública e com acesso através da rede de transportes públicos, no cuore da nossa Cidade! O Zé esteve na minha banca de graduação e, muito do que lancei ali, era fruto do que conversávamos nas idas e vindas à copiadora, à casa Califórnia, ao Lírico...Nas críticas preciosas que ele fazia ao projeto, equivocado sem dúvida, para o Vale do Anhangabaú! Lembro–me de sua bela frase, ao examinar projetos recentemente publicados nas revistas especializadas, que a muitos não traziam ineditismos, tão em moda em tempos de “pós–modernismo” (“...um último suspiro de arquitetos cansados...”, no dizer do mestre Lúcio Costa!) ele pontuava: “ O que importa é a frase, não as palavras! “
É importante frisar que, graças à sabedoria e cultura arquitetônica do Zé, pude entender melhor, a própria obra de meu pai! Ele me chamava a atenção para a relação de espaço interno / externo no fórum de Avaré, que desenhava de memória, me mostrando no corte como a luz entrava e a topografia estava visceralmente imbricada à arquitetura sendo, impossível, separar edifício de praça. Evidentemente, o Zé, borrador-de-fronteiras, se encantava com isto e, me mostrava como o mestre da escola paulista, jogava por terra a dicotomia entre os ”modernistas” e “contextualistas” pois, seu projeto para a Grota da Bela Vista, era de uma adequação exemplar, de uma simbiose com a topografia e a geografia da cidade que, era ele, Paulo Mendes da Rocha, também, um antropófago! (este termo, o Zé não usava mas, aprendi depois, que se adequaria perfeitamente ao processo de deglutição e transmutação ideológico-intelectual que lhe era peculiar! Eu havia lido “O Discurso competente e suas falas”, de Marilena Chauí, e, tudo aquilo que o Zé, propunha, era altamente revolucionário, na melhor acepção da palavra, anti-dogmático, por excelência, e democrático na essência, questionando sempre as doxas!  
No seminário sobre ‘pigmentação do concreto’, na manhã de ontem, de pré-inauguração da Praça das Artes, o arquiteto Marcelo Ferraz abre seu depoimento definindo arquitetura como “...serviço público...”, o secretário municipal de Cultura, prof. Carlos Augusto Calil, aponta a necessidade, imperiosa, de se rever o desenho, inadequado, do Parque do Anhangabaú, não contemplado nesta gestão mas que, inexoravelmente, o próximo prefeito deverá contemplar pois, o Centro da Cidade ‘é de todos’! a Cidade pede um desenho melhor! 
Na saída, apressado para voltar ao escritório, me deparo com inúmeras bandeiras dos movimentos de luta por habitação, que pendem dos edifícios residenciais, históricos clamando por restauro / readequação, da São João, recém-invadidos pois, é um absurdo este estoque de imóveis abandonados, o Centro sem vida, e tantas famílias de trabalhadores, sem-teto...aceno para um táxi, indicando o sentido à esquerda do Municipal, ele me responde com buzinadas e gesticula que, ali, não pode parar mas, que eu o alcance alguns metros adiante, no ponto atrás do Municipal, corro esbaforido para honrar a gentileza e, encontro um debilitado Antonio Abujamra, bengala em punho, meio curvado, com sua careca avantajada e os poucos cabelos restantes, nas laterais da cabeça, compridos beirando o grisalho, óculos de lentes verde e um sorriso entre intrigado e indignado, reclamando o privilégio concedido a mim e pleiteando a prerrogativa de tomá-lo..., polidamente, declino para que o mesmo possa usar o táxi ao que recebo um gentil sorriso cidadão! Seguramente, meu amigo José Fábio Calazans, que esteve presente nesta manhã toda, embarcou naquele táxi! Eu é que te agradeço enfaticamente, meu caro Zé! Pena não termos comido uma lingüiça na Casa Califórnia e posto a conversa em dia! Descanse em merecida paz!
pedro mendes da rocha, 29/11/2012

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

desenhos do Zé





Tata fala sobre o Zé


MEU AMIGO JOSÉ FÁBIO ZAMITH CALAZANS

A publicação deste livro e a realização da exposição do trabalho de José Fábio Zamith Calazans, produzida pelo arquiteto André Takiya com o apoio da FAUUSP na gestão do Prof. Sylvio Sawaya e agora na do prof. Marcelo Romero, significa o resgate social de uma produção imensa e de grande significado para a arquitetura e para seu ensino. É um resgate pelo fato de ter sido até agora injusta e lamentavelmente alijada do processo real de produção da cidade e da arquitetura pelos seus agentes, justamente pela sua excepcional qualidade indissociável de sua integridade ética, estética e política, o que a coloca além da proposição, como questionamento e desafio permanentes em relação à ação do homem na construção de seu espaço.
A exposição nos permite entrever a extensão do esforço humano na construção dessa coerência e integridade raras, do profissional com o artista, do homem com o cidadão, do pessoal com o social, às vezes à custa da própria saúde física.
Conheci o Zé na entrada do prédio da FAU logo no início da plataforma de acesso, já na sombra do peristilo. Barba até o peito, cabelo no ombro, sem idade distinguível, naturalmente a figura já chamaria a atenção. Mas não foi o que reparei: chamou-me a atenção a enorme pasta que carregava debaixo do braço cheia de desenhos e diagramas que podiam ser entrevistos transbordando para fora dela. Conversava com um de nossos professores, o que também me chamou a atenção, pois o assunto era nossa disciplina. Era 1972 e eu estava no primeiro ano. Naquele período de efervescência política reprimida, radicalizações e questionamentos, não se via isso na FAU: desenhos, e ainda mais naquela profusão. E foi isso me chamou a atenção.
Era nossa professora a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato que, como pesquisadora já estudava a denominada cidade real em contraposição à cidade oficial, como cidadã atuava contra a concentração do investimento público nesta última e como professora trabalhava por uma formação crítica dos estudantes afinada com as questões mais urgentes da cidade e da sociedade brasileira entre as quais a precariedade e a miséria das periferias metropolitanas. Em função disso o objeto de trabalho da disciplina de projeto do primeiro ano foi a então chamada periferia da cidade de São Paulo.
Com a repressão o que restou da possibilidade de ação política migrou para os movimentos sociais: associações de bairro, grupos de mães, agremiações religiosas, etc. E os objetivos da ação política de certa forma passaram a se relacionar mais diretamente à cidade: transporte, asfalto, regularização fundiária, educação, água, esgoto, atendimento médico, etc. Os locais de encontro eram as igrejas, salões paroquiais ou sedes de associações de bairro que muitas vezes funcionavam nas residências das principais lideranças. O Zé Calazans, nessa época no 4ª ano da FAU, tinha um trabalho nesse âmbito relacionando-se com diversas lideranças da zona sul: Vila Remo, Jardim Ângela, Jardim Jacira, Jardim Alfredo e outros. Esse o assunto da conversa com nosso professor: contatar as lideranças de bairro para viabilizar e dar consistência aos trabalhos dos estudantes.
Assim conheci o Zé Fabio: a integridade e coerência da ação política com o trabalho do arquiteto e artista. Coerência com liberdade e autonomia, vivendo intensamente as contradições próprias desses processos e se reinventando a cada conflito. A ação política na luta por uma sociedade mais justa e o trabalho como arquiteto e artista na busca e afirmação da cidade como ideal de espaço humano, extensão da casa, e de uma estética na qual o vazio, enquanto abrigo das relações humanas, é o determinante primordial da arquitetura.
José Fabio Calazans teve na juventude uma convivência privilegiada com Vilanova Artigas, amigo e colega de escola de seu filho Júlio, freqüentou quando jovem sua casa, o que propiciou um contato profundo com seu pensamento e sua produção vivenciando os debates que ali ocorriam, às vezes percorrendo com o mestre suas obras, algumas ainda em construção. Talvez resida aí seu arrebatamento pela arquitetura associada à ação social e política. Calazans exprime em seus projetos uma compreensão profunda da obra de Vilanova Artigas que vai muito além da arquitetura e da construção propriamente ditas, até porque faz parte da obra do mestre sua permanente reinvenção.
A exposição apresenta o transito fluido de José Calazans das questões políticas e econômicas relacionadas particularmente à cidade e a habitação para as questões estéticas atinentes ao trabalho de arquiteto e vice versa.
Seu ideal de Metrópole para São Paulo, além das questões econômicas e sociais, passa pelo desenho e incorpora as identidades e preexistências locais, a configuração e apropriação histórica de seus sítios geográficos e principalmente a possibilidade de uma harmonia na articulação disso tudo onde a integralidade das várias escalas aliada à autonomia e identidade de cada uma delas nos permite imaginar a possibilidade de uma percepção da metrópole no próprio desenho da casa e inversamente uma idéia para o morar presente no desenho da Metrópole.
A busca por um nexo dialético entre a parte e o todo perpassa sua produção desde os tempos de escola. Sua permanente e explícita busca pela beleza contempla, mas transcende a forma: pressupõe o vazio que dá sentido a ela e as relações humanas que propicia. Vê-se nestes projetos as configurações formais se constituírem em afirmação de relações sociais e humanas e vice-versa.
A partir daquela experiência do primeiro ano, tive o privilégio de conviver e de trabalhar vários anos com José Calazans. É notável sua capacidade de trabalho em equipe. Discutir incansavelmente por um consenso, tendo sempre o desenho como suporte, revelar e incorporar o que as mais diversas idéias tivessem de melhor. O seu TGI (Trabalho de Graduação Interdisciplinar) como era denominado o TFG foi realizado em equipe e tinha um desenho para a metrópole como base comum dos projetos individuais.
A coerência dos projetos aqui apresentados com os conceitos, com as idéias e com o intenso processo de trabalho sem concessões de que são fruto faz deles um material precioso para o ensino de projeto. O desafio que se coloca agora é permitir que o resgate desta enorme produção consubstanciada neste livro e na exposição se configure como uma real oportunidade para seu desdobramento e continuidade, seja no nível acadêmico seja no nível profissional.

Antonio Carlos Barossi