sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Tata fala sobre o Zé


MEU AMIGO JOSÉ FÁBIO ZAMITH CALAZANS

A publicação deste livro e a realização da exposição do trabalho de José Fábio Zamith Calazans, produzida pelo arquiteto André Takiya com o apoio da FAUUSP na gestão do Prof. Sylvio Sawaya e agora na do prof. Marcelo Romero, significa o resgate social de uma produção imensa e de grande significado para a arquitetura e para seu ensino. É um resgate pelo fato de ter sido até agora injusta e lamentavelmente alijada do processo real de produção da cidade e da arquitetura pelos seus agentes, justamente pela sua excepcional qualidade indissociável de sua integridade ética, estética e política, o que a coloca além da proposição, como questionamento e desafio permanentes em relação à ação do homem na construção de seu espaço.
A exposição nos permite entrever a extensão do esforço humano na construção dessa coerência e integridade raras, do profissional com o artista, do homem com o cidadão, do pessoal com o social, às vezes à custa da própria saúde física.
Conheci o Zé na entrada do prédio da FAU logo no início da plataforma de acesso, já na sombra do peristilo. Barba até o peito, cabelo no ombro, sem idade distinguível, naturalmente a figura já chamaria a atenção. Mas não foi o que reparei: chamou-me a atenção a enorme pasta que carregava debaixo do braço cheia de desenhos e diagramas que podiam ser entrevistos transbordando para fora dela. Conversava com um de nossos professores, o que também me chamou a atenção, pois o assunto era nossa disciplina. Era 1972 e eu estava no primeiro ano. Naquele período de efervescência política reprimida, radicalizações e questionamentos, não se via isso na FAU: desenhos, e ainda mais naquela profusão. E foi isso me chamou a atenção.
Era nossa professora a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato que, como pesquisadora já estudava a denominada cidade real em contraposição à cidade oficial, como cidadã atuava contra a concentração do investimento público nesta última e como professora trabalhava por uma formação crítica dos estudantes afinada com as questões mais urgentes da cidade e da sociedade brasileira entre as quais a precariedade e a miséria das periferias metropolitanas. Em função disso o objeto de trabalho da disciplina de projeto do primeiro ano foi a então chamada periferia da cidade de São Paulo.
Com a repressão o que restou da possibilidade de ação política migrou para os movimentos sociais: associações de bairro, grupos de mães, agremiações religiosas, etc. E os objetivos da ação política de certa forma passaram a se relacionar mais diretamente à cidade: transporte, asfalto, regularização fundiária, educação, água, esgoto, atendimento médico, etc. Os locais de encontro eram as igrejas, salões paroquiais ou sedes de associações de bairro que muitas vezes funcionavam nas residências das principais lideranças. O Zé Calazans, nessa época no 4ª ano da FAU, tinha um trabalho nesse âmbito relacionando-se com diversas lideranças da zona sul: Vila Remo, Jardim Ângela, Jardim Jacira, Jardim Alfredo e outros. Esse o assunto da conversa com nosso professor: contatar as lideranças de bairro para viabilizar e dar consistência aos trabalhos dos estudantes.
Assim conheci o Zé Fabio: a integridade e coerência da ação política com o trabalho do arquiteto e artista. Coerência com liberdade e autonomia, vivendo intensamente as contradições próprias desses processos e se reinventando a cada conflito. A ação política na luta por uma sociedade mais justa e o trabalho como arquiteto e artista na busca e afirmação da cidade como ideal de espaço humano, extensão da casa, e de uma estética na qual o vazio, enquanto abrigo das relações humanas, é o determinante primordial da arquitetura.
José Fabio Calazans teve na juventude uma convivência privilegiada com Vilanova Artigas, amigo e colega de escola de seu filho Júlio, freqüentou quando jovem sua casa, o que propiciou um contato profundo com seu pensamento e sua produção vivenciando os debates que ali ocorriam, às vezes percorrendo com o mestre suas obras, algumas ainda em construção. Talvez resida aí seu arrebatamento pela arquitetura associada à ação social e política. Calazans exprime em seus projetos uma compreensão profunda da obra de Vilanova Artigas que vai muito além da arquitetura e da construção propriamente ditas, até porque faz parte da obra do mestre sua permanente reinvenção.
A exposição apresenta o transito fluido de José Calazans das questões políticas e econômicas relacionadas particularmente à cidade e a habitação para as questões estéticas atinentes ao trabalho de arquiteto e vice versa.
Seu ideal de Metrópole para São Paulo, além das questões econômicas e sociais, passa pelo desenho e incorpora as identidades e preexistências locais, a configuração e apropriação histórica de seus sítios geográficos e principalmente a possibilidade de uma harmonia na articulação disso tudo onde a integralidade das várias escalas aliada à autonomia e identidade de cada uma delas nos permite imaginar a possibilidade de uma percepção da metrópole no próprio desenho da casa e inversamente uma idéia para o morar presente no desenho da Metrópole.
A busca por um nexo dialético entre a parte e o todo perpassa sua produção desde os tempos de escola. Sua permanente e explícita busca pela beleza contempla, mas transcende a forma: pressupõe o vazio que dá sentido a ela e as relações humanas que propicia. Vê-se nestes projetos as configurações formais se constituírem em afirmação de relações sociais e humanas e vice-versa.
A partir daquela experiência do primeiro ano, tive o privilégio de conviver e de trabalhar vários anos com José Calazans. É notável sua capacidade de trabalho em equipe. Discutir incansavelmente por um consenso, tendo sempre o desenho como suporte, revelar e incorporar o que as mais diversas idéias tivessem de melhor. O seu TGI (Trabalho de Graduação Interdisciplinar) como era denominado o TFG foi realizado em equipe e tinha um desenho para a metrópole como base comum dos projetos individuais.
A coerência dos projetos aqui apresentados com os conceitos, com as idéias e com o intenso processo de trabalho sem concessões de que são fruto faz deles um material precioso para o ensino de projeto. O desafio que se coloca agora é permitir que o resgate desta enorme produção consubstanciada neste livro e na exposição se configure como uma real oportunidade para seu desdobramento e continuidade, seja no nível acadêmico seja no nível profissional.

Antonio Carlos Barossi

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